O Mês da Consciência Negra, celebrado em novembro no Brasil, consolidou-se como um espaço de reflexão sobre desigualdades enraizadas e sobre as respostas que governos, instituições e comunidades constroem para enfrentá-las. Essa agenda, longe de ser exclusiva do país, conecta-se a desafios comuns em cidades de toda a América Latina: desigualdades persistentes em saúde, educação, moradia, atendimento institucional e acesso a oportunidades, que afetam de maneira desproporcional a população afrodescendente.
Em um contexto em que os municípios estão cada vez mais próximos dos problemas cotidianos, as cidades brasileiras têm mostrado caminhos possíveis para abordar o racismo a partir da gestão local. Duas experiências — Vitória e Salvador — permitem observar distintas estratégias para fortalecer a participação social, revisar práticas internas, institucionalizar políticas públicas e gerar impacto sustentável.
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Vitória: participação territorial, memória ativa e uma política contínua de igualdade racial
A capital do estado do Espírito Santo desenvolveu, ao longo de mais de duas décadas, uma estrutura institucional que combina participação cidadã, ações educativas e políticas territoriais para enfrentar desigualdades históricas que afetaram especialmente a população negra.
Desde o fim dos anos 1990, a cidade conta com o Conselho Municipal do Negro (Conegro), um espaço de representação social e estatal que orienta prioridades, propõe políticas públicas e monitora sua execução. Essa construção institucional é complementada pelo Museu do Negro, administrado pela Prefeitura e ativo na preservação da memória, em oficinas educativas e rodas de conversa comunitária.
O secretário de Cidadania, Direitos Humanos e Trabalho, Luciano Forrechi, resumiu para RIL e +COMUNIDAD o sentido dessa estrutura: “A proposta do Conselho Municipal do Negro é dar destaque e priorizar, a partir da participação, políticas definidas pelo próprio grupo como prioritárias para a cidade. E o Museu do Negro cumpre um papel central ao manter viva a cultura em um espaço aberto à comunidade”.
A conformação do Conselho se apoiou em um modelo territorial de nove regionais, que gera contato frequente com lideranças locais. Todas as quintas-feiras, a Secretaria se reúne com uma das regiões para ouvir demandas, articular propostas e reforçar a participação comunitária.
Segundo Forrechi, essa dinâmica foi fundamental para garantir representatividade e fortalecer a vinculação com associações de moradores que historicamente enfrentaram desigualdades. “Temos uma relação muito próxima com as comunidades. Esse diálogo semanal facilita a mobilização e permite que as associações divulguem a importância do Conselho”, explica.
Participação contínua e expansão territorial
Um dos principais desafios iniciais foi garantir a participação voluntária da sociedade civil em um órgão não remunerado. Para sustentar a qualidade técnica e assegurar continuidade, a Prefeitura designou uma servidora especializada em direito para acompanhar as atividades do Conselho. “Envolver a sociedade civil é sempre mais difícil, porque exige compromisso. Por isso precisávamos de uma equipe capacitada que desse suporte técnico e jurídico. Esse apoio ampliou a capacidade executiva do Conselho”, afirma o secretário.
A agenda de igualdade racial também se integra com políticas de juventude e revitalização urbana. Durante o Mês da Consciência Negra, Vitória promove dezenas de atividades culturais, educativas e esportivas nas Casas da Juventude, muitas localizadas em territórios que viveram longos processos de exclusão, como Grande São Pedro.
Ali, a transformação urbana e os novos equipamentos públicos consolidaram espaços de participação de jovens negros em políticas culturais e formativas. Entre as ações mais emblemáticas, destaca-se a Corrida Zumbi dos Palmares, realizada há 14 anos, que conecta a Casa do Cidadão ao Museu do Negro. “É uma forma de chamar a atenção da população e fortalecer a memória. A corrida se tornou um encontro cultural com música, gastronomia e artesanato vinculados ao Conselho”, afirma Forrechi.
O secretário sustenta que a continuidade dessas políticas depende de uma premissa básica: que as propostas do Conselho se traduzam em ações concretas. “Qualquer Conselho é mais efetivo quando as propostas apresentadas são executadas. Se as pessoas se reúnem, propõem, e nada acontece, isso desmotiva e esvazia o espaço”, avalia. Para evitar esse risco, a Secretaria elaborou um plano estratégico que permite transformar ideias em projetos executáveis e com potencial de financiamento, fortalecendo a confiança das comunidades no processo.

Educação, políticas públicas e aprendizagens para a região
A cidade também relaciona essa agenda com a expansão das escolas de tempo integral, que passaram de quatro em 2021 para mais de quarenta atualmente. Para Forrechi, essa política educacional integra uma estratégia ampla de redução de desigualdades e prevenção de violências. “Oferecer educação para toda a população diminui as possibilidades de que crianças e adolescentes fiquem em situações de risco. Espaço público ocupado, políticas bem estabelecidas e educação acessível: essa combinação é uma das melhores formas de melhorar a qualidade de vida”.
Vitória identifica várias oportunidades de aprendizagem para outras cidades da região: institucionalizar espaços de participação, fortalecer a presença territorial do Estado, garantir suporte técnico permanente e sustentar rotinas de diálogo capazes de transformar demandas sociais em políticas reais. Como experiência replicável, Forrechi menciona o programa Cidadania Fundamental, que convida estudantes do nono ano a passar um dia na Secretaria para conhecer como se desenham políticas públicas, incluindo o trabalho do Conegro. “Levar essa temática às escolas — ou trazer as escolas a esses espaços — multiplica o impacto no curto, médio e longo prazo”, destaca.
Salvador: uma política pioneira para transformar a administração e combater o racismo
Salvador é uma das cidades brasileiras que mais cedo reconheceu que as desigualdades enfrentadas pela população negra não podiam ser explicadas apenas por preconceitos individuais. A administração municipal identificou que, em muitos serviços, existiam práticas, critérios e rotinas que produziam resultados desiguais sem intenção explícita de discriminar.
Esse diagnóstico deu origem, em 2005, a uma política sistêmica: o Programa Municipal de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), liderado pela Secretaria Municipal de Reparação (Semur), hoje comandada pela advogada e ativista Isaura Genoveva. “Identificamos que o racismo não era apenas um problema de atitudes individuais, mas um padrão estruturado de práticas e omissões que gerava desigualdades no acesso e na qualidade dos serviços”, explicou Genoveva a +COMUNIDAD.
O diagnóstico coincide com a definição oficial adotada pelo PCRI: falhas e vieses nas práticas institucionais que produzem desvantagens raciais, mesmo sem intenção explícita. Para a secretária, reconhecer esse funcionamento interno foi decisivo para orientar a resposta: “Era necessário institucionalizar processos que permitissem detectar, prevenir e corrigir desigualdades”.
A partir dali, Salvador optou por uma política que transformasse a administração desde dentro. Genoveva detalhou que um dos primeiros passos foi a formação continuada de servidores, centrada em racismo institucional, vieses inconscientes e práticas antirracistas. “Esse letramento racial criou uma base comum e estimulou a revisão crítica das rotinas administrativas”, afirmou. Paralelamente, foram criados os Núcleos Internos do PCRI em cada secretaria, equipes responsáveis por adaptar as diretrizes gerais à realidade de cada área. “Os núcleos garantem capilaridade e fazem com que a política não dependa apenas de campanhas ou de uma gestão pontual”, acrescentou.

Mudanças institucionais e efeitos nos serviços públicos
A secretária também destacou a implementação de protocolos e orientações técnicas para áreas sensíveis, como a saúde, historicamente atravessada por desigualdades raciais. A incorporação de dados desagregados por raça/cor foi outro elemento central. “Eles permitem monitorar desigualdades e orientar decisões baseadas em evidências”, explicou. Segundo Genoveva, essa etapa foi complementada por cartilhas educativas, seminários e materiais de apoio que ajudaram a construir consciência institucional e compromisso entre as equipes técnicas.
Os impactos, afirma, são cada vez mais visíveis. “Percebe-se uma administração com maior capacidade para reconhecer problemas e evitar danos”, avaliou. Em serviços essenciais, como saúde e assistência social, os servidores dispõem de mais ferramentas para identificar situações discriminatórias e agir de forma preventiva. Também houve avanços na relação entre o governo e as comunidades negras, fortalecida por iniciativas como o Novembro Negro e o Salvador Capital Afro, que consolidaram um compromisso público permanente com a equidade racial.
Genoveva ressalta que a política se sustenta pela ação conjunta de múltiplos atores. A Semur exerce a coordenação conceitual, mas os Núcleos Internos são responsáveis por levar a política ao cotidiano das secretarias. Movimentos sociais, organizações negras, universidades e centros de pesquisa participam de diagnósticos, formações e avaliações. A secretária também mencionou o apoio de organismos internacionais em distintas fases de implementação.

Uma política estável contra o racismo, aprendizados e projeção regional
Ao ser questionada sobre os fatores que explicam a continuidade do PCRI, Genoveva enumerou três pilares: “A institucionalização dentro da estrutura administrativa; a formação continuada, que cria memória institucional; e a presença constante da pauta racial nas agendas estratégicas da cidade”. Esse conjunto, afirma, permitiu que a política permanecesse ativa e adaptável, mesmo em contextos de mudança de gestão.
Para outras cidades latino-americanas que buscam enfrentar desigualdades raciais, a experiência de Salvador oferece um conjunto de aprendizados. Genoveva enfatiza a importância de começar com um diagnóstico profundo dos próprios processos internos: “É indispensável entender onde e como o racismo opera na administração”. Também considera fundamental criar estruturas permanentes — como os núcleos internos — capazes de sustentar a política a longo prazo; investir em formação contínua; e desenvolver sistemas de dados com recorte racial para orientar a tomada de decisões. A participação de movimentos sociais e da academia, afirma, fortalece a legitimidade e mantém a política conectada às demandas reais da população negra.
O PCRI segue plenamente ativo. A Semur continua promovendo formações, encontros e ações intersetoriais, enquanto os Núcleos Internos trabalham de forma descentralizada nas diversas secretarias. Profissionais de saúde, educação, gestão e assistência social participam regularmente de atividades vinculadas à política. Documentos, cartilhas e registros fotográficos podem ser consultados nos relatórios oficiais da Prefeitura e nas publicações da Semur. Reúnem materiais das formações, seminários e ações desenvolvidas nos últimos anos.
Para Genoveva, o desafio central segue sendo sustentar a transformação estrutural iniciada pelo PCRI: “É uma política que exige continuidade, revisão permanente e compromisso de toda a administração”. Salvador, afirma, avança para um modelo em que o enfrentamento ao racismo institucional não é um projeto pontual, mas um princípio de gestão. Uma experiência que, por sua capacidade de transformar processos internos e construir mudanças culturais duradouras, hoje se observa como referência para cidades de toda a América Latina.
Imagem principal: Prefeitura de Vitória.
Redação +COMUNIDAD
